o feminismo, meu corpo e as regras de outrém

aceitar o próprio corpo é uma roleta russa. tem dia que cai em você e nem o motorista que te chamar de “balofa” pra te dar a passagem fora da faixa vai diminuir seu amor próprio. tem dia que até uma risada quando você entra no ambiente vai parecer ter sido gerada pela sua cara.

ainda mais quando você tá fora do padrão: se você não é branca, se o seu cabelo não é liso, se você não veste 38 e não calça 36, se seu corpo não entende que depilação custa caro e não mantém por duas semaninhas os últimos 70 pilas que você pagou ou se o seu nariz não foi feito pelo dr. Hollywood: I feel you, sistah.

não usar maquiagem já é um avanço. tem dia que a pele acorda pior que a dos adolescentes que precisaram de roacutan (presente!) e a vontade que dá é de jogar ácido sulfúrico pra ver se tira a oleosidade da área T. e o olho, cansado, que pede um corretivo amarelo depois do primer e uma quantidade considerável de um BB Cream qualquer? nem vou começar a falar da boca que com certeza veio da cor errada, porque todo mundo insiste em perguntar se eu tô doente se não tô de batom.

pra piorar, a vida real acontece girando em torno de uma mídia (desculpa aí, parceiros de profissão, mas cês só cagam na tanga) totalmente excludente que reafirma os padrões de beleza inalcançáveis e fazem pelo menos quatro meninas chorarem por anúncio divulgado.

não odiar o próprio corpo é uma guerra. não é falta de entender à quê nossa sociedade nos condiciona, não é falta de desconstrução (#desconstruidona). as mulheres que eu mais admiro dentro do movimento feminista têm problemas em aceitar seus corpos como são. talvez seja uma transição. mas, com certeza, é uma guerra.

é muito bonito quando a gente lê por aí que o corpo feminino é lindo como é, que suas dobras são lindas como são, que seu cabelo é lindo como foi feito, que sua celulite é poesia escrita na pele, que suas estrias são como as ondas no mar. uh! dá até pra acreditar por 1,9 segundos. mas é só olhar pro espelho que a gente volta pra estaca zero e pr’aquele terrível gosto na boca, que diz: “eu nem gosto tanto assim desse reflexo”.

o discurso é maravilhoso e toda feminista sabe recitar (presente, de novo!), mas, no fim do dia, dá pra contar nos dedos de uma mão quem realmente vive o que fala. e a culpa não é nossa, não.

eu, que me considero bonita e tenho a autoestima no lugar, vezenquando me pego pensando em como já fui mais magra, mais bonita, mais ajeitada e nas coisas que posso ter deixado de conquistar porque conquistei os 15kg que me lembram diariamente que larguei a academia umas quatro ou cinco vezes.

vejo mulheres que considero lindas reclamando de pintas pelo corpo, de cicatrizes, de celulites imperceptíveis, de marcas de nascença que parecem ter sido colocadas à mão, de tão exatas. vejo mulheres que considero lindas estragando a própria pele ao entupir os poros do rosto de maquiagem para esconder imperfeições perfeitas.

e pra quê, né? a gente deixa de sorrir pra foto porque evidencia o nariz, deixa de usar regata pra não mostrar o braço, deixa de usar shorts pra não marcar as coxas. a gente deixa de transar pra não mostrar o corpo, deixa de gozar se não apagar a luz. a gente queima a pele pra tirar o pêlo, queima o cabelo pra tirar o cacho — queima o sutiã pra quê?

aliás, sutiãs! a gente machuca e aperta o peito pra ninguém saber o que todo mundo já sabe: mulher tem mamilo.

breaking news.

é engraçado e irritante ao mesmo tempo quando a gente consegue perceber que chegou no nível em que não sabe mais se ama ou odeia o próprio corpo.

eu mesma estacionei nesse estágio. me acho bonita. e, às vezes, também acho que preciso perder esses 15kg pra ontem. me acho atraente. e também acho que ninguém tem razão alguma pra se sentir atraído por mim. não uso maquiagem, não uso sutiã e não deixo de fazer nada por conta do meu corpo. mas vezenquando preciso olhar no espelho e lembrar pela bilionésima vez que não preciso parecer com ninguém, porque eu já me pareço comigo e isso é tudo o que eu preciso ser.

a gente vai sobrevivendo com um discurso maravilhoso de amor próprio que, quando falha, faz a gente cair do cavalo na self-esteem feminist tour e chegar no fim do dia com a cara arrastada no chão, sem maquiagem, sem sutiã, com todas as imperfeições com as quais a gente nasceu, cresceu e foi construindo no corpo ao longo de uma vida toda pairando do nosso lado no fundo do poço. esses dias, a gente, que decorou o discurso e quase se sente culpada por se sentir assim, só espera acabar.

no fim do dia, a gente se odiando ou se amando, aceitando nossa pele como é ou remendando como pode, com a luz acesa ou apagada, todo mundo deita pra dormir e, no dia seguinte, acorda no mesmo corpo que, até agora, cumpriu muito bem seu papel de nos trazer até aqui. alguns dias, com nossa aprovação. outros, com nosso desprezo. sempre, bonito como é.

por hoje, já vale. amanhã a gente vê — ou espera acabar.


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