é fácil ser um homem feio. é parecido com metade da população masculina do mundo então você sai de casa para trabalhar sabendo que pelo menos ½ dos homens com quem você se encontrar hoje vão gostar de você. os homens são metade do mundo e você já sabe que vai se dar bem com metade de metade do mundo. ¼ de aprovação é mais do que o bolsonaro tem. não parece problema pra ele.
eu tenho ¾ de rejeição. eu sou um homem feio preso no corpo de uma mulher feia. o que é duplamente horroroso. horroroso porque essa é a palavra que melhor descreve a sensação permanente de ausência com a qual eu convivo. posso tentar explicar pra você, como se eu tentasse explicar para uma criança: desde que nasci, sinto que deveria ser de outra forma. em todo santo segundo percebo que algo não está como deveria: se não é da mente é do olhar do mundo inteiro pra dentro de mim. não esqueço, por um segundo sequer, do quanto gostaria de poder ser visto como homem, de ser colocado nas rodas como homem, de ser relacionado ao homem que sinto que sou. ninguém entende quem eu sou ou o que eu digo.
se eu fosse feio, então passaria desapercebido, mas sou feia, então reparam em mim a todo tempo. até o pouco feminino desperta o olhar. eu nunca vou conseguir perdoar deus. permitir que seus servos construam moral em cima de gênero é uma loucura sem tamanho. nem sentido faz. mas vai tentar dizer, você, visto como mulher feia, que mulheres e homens têm os mesmos direitos. a ignorância é percebida em todos os seus estados, da grosseria à mais pura burrice, como é o caso.
mulher feia não tem direito aos seus direitos, mulher feia não trepa no copacabana palace, mulher feia não ganha desconto nem fura fila. mulher feia espera sua vez, pega o caminho mais longo, trepa em motel da rede bali. ninguém gosta dos motéis da rede bali, só levam lá aquelas pessoas com quem não se orgulham de trepar. a maioria fecha até o teto solar do carro, pra não correr o risco de ser visto por alguém. assim, se encontram conhecidos, sabem que estão igualmente humilhados acompanhados por mulheres feias. ninguém pode julgar.
eu, por mais que seja visto como mulher, sei que sou feio porque desejo as mulheres feias. talvez porque vivo no corpo da mulher feia que é rejeitada por ¾ da população mundial. talvez porque nós, vistos e vistas pela sociedade como mulheres feias, temos tempo para o processo de construção do que prevemos como nosso futuro melhor. o futuro melhor da pessoa que é vista como mulher feia é, quem sabe, encontrar outra mulher feia com quem se deitar. e, entre a permanente sensação de ausência do meu corpo e a inédita sensação de ser desejada do outro corpo ao lado do meu, fazemos o que ¾ do mundo nunca arriscaria fazer antes de engolir uma garrafa inteira de gim: reservar uma pernoite e chegar a pé num motel da maldita rede bali para que todos vejam o belíssimo casal de mulheres feias que seríamos se eu não fosse um homem feio.
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