citar outra pessoa era uma coisa muito feita quando ainda se faziam blogs. era legal: a gente ia lá, chamava alguém pra escrever alguma coisa, conhecia novas vozes. se via em outros formatos. era divertido, plural, mostrava muito da gente. a gente parou. porque agora não se fazem mais blogs. mas hoje é dia do escritor, e eu pensei, não faz sentido não citar alguém, não faz sentido não citar caio. precisava citar caio que escrevia crônicas em jornais desde que a vida lhe foi dada como sua e, em 1986, narrou o que nós todos precisamos ler em 2020. é assim que se faz literatura, eu sempre penso, ou pelo menos era assim que se fazia literatura quando ainda se faziam escritores.
“Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa. Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto – olha por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem. (…) Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.”
(Caio Fernando de Abreu, n’O Estado de S. Paulo, 24/09/86)
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