quando ela pisou em casa eu já tinha saído. era terça-feira, umas nove, dia frio no meio do verão. do lado de fora chovia o dia todo. do lado de dentro eu evitei pensar. evitei encontrar, por isso saí. sentei numa lanchonete que tem do lado de casa, pedi um suco de laranja e fiquei vendo a câmera, esperando ela chegar.
ela começou pelo quarto.
eu tomei cuidado pra ver se haveria um momento de ficha-caindo em que ela sentaria no chão da sala e choraria em silêncio.
não houve.
foi direto pro quarto, pro armário, com duas malas. subiu ambas de uma vez nas escadas, eu vi.
na primeira mala, a maior, colocou as coisas que estavam em cabides. ela está levando os cabides.
na segunda mala, de mão, foram entupidas as camisetas e shorts de academia.
as outras roupas ela já tinha levado no dia.
faz oito dias desde o dia. foi na segunda-feira passada.
tava calor. o tempo tava melhor, o dia tava bonito. eu tava aqui nessa lanchonete, tomando uma cerveja.
chega uma menina pra falar comigo, com o cabelo meio verde e meio branco. ela perguntou se eu tava sozinha, e eu apontei pra cadeira como quem convida. ela me conta que acabou de sair de uma prova de pré-vestibular, a última do ano, e que está sem coragem pra corrigir sozinha. pediu pra eu ajudá-la. eu digo que tudo bem. pergunto quantos anos ela tem, porque, apesar do cabelo colorido, ela tinha marcas de expressão que não aparecem nos rostos de 17. ela não respondeu a idade, mas disse estou mudando de carreira, é por isso.
não questionei.
pedi outra cerveja, servi pra ela, pra mim, e pedi pra ela começar.
certo, certo, certo, errado, certo, certo, certo, até agora tá indo bem, certo, certo, errado, certo, certo, certo, errado, errado, errado, certo, certo, certo, certo.
ela sorriu. depois começou a falar loucamente e dizer meu deus eu preciso fazer isso sozinha, me dá aqui e começou a mexer nas folhas desesperadamente com uma caneta colorida que eu não necessariamente vi de onde saiu.
ela fez tudo muito rápido, falando algumas questões em voz alta, questionando outras, recitando alguns dos textos das provas de química como se fossem poemas. eu terminei de beber a cerveja e ela nem tinha encostado no copo. pedi outra, enchi meu copo, e ela continuava falando.
num dado momento, levanta, eufórica, me dá um abraço, gira comigo, grita e me dá um beijo na boca. eu tomo um susto, não percebo de onde vem, me afasto, digo que não posso, que namoro, que estava só ajudando. ela diz me desculpe, eu fiquei emocionada, acho que eu tenho chances de passar. sorri. talvez ela tenha percebido o meu desconforto e disse que precisava ir. antes, agradeceu.
achei tudo muito estranho, terminei a cerveja o mais rápido que consegui e voltei pra casa. a intenção era de contar pra minha namorada a loucura que tinha acontecido.
ela tinha visto. como eu disse, nesse dia, quando cheguei, ela já estava com roupas dentro da mochila. as mais importantes, que usa sempre. pegou direto no varal, sem passar, e eu fiquei pensando se ela ia levar o meu ferro. é claro que eu tentei me explicar, dizer que não era aquilo, foi um mal entendido, a menina é uma vestibulanda, está mudando de carreira, eu não a conheço, mas ela não quis ouvir. ela disse que nosso relacionamento já estava uma merda e ela percebeu que não precisa esperar ser corna pra ter coragem de terminar. eu implorei pra que ela me ouvisse, e ela disse que, mesmo que eu esteja falando a verdade, ela não quer mais saber de mim.
esse foi o motivo pelo qual, quando ela falou comigo, pela primeira vez depois de oito dias hoje, pra dizer que ia pra minha casa, eu saí.
admito que fiquei com medo de sentar na lanchonete, mas também me perguntei por que ela iria logo ali, com tantas outras opções. arrisquei. quero voltar pra casa o quanto antes. assim que ela terminar de arrumar as coisas, saio. mas agora ela parou. enquanto eu contava a história, ela fez a cena. sentou no sofá, com as duas malas cheias, e ficou.
não consigo ver se ela está chorando.
faz pelo menos seis minutos. agora parece que ela está decidindo levantar, porque pegou no celular rapidamente e já colocou de volta no bolso de fora da mochila amarela. levantou. ela tá indo embora.
eu começo a chorar, pela terceira vez hoje, e decido que é melhor eu ficar no banheiro por uns minutos pra garantir que não vou encontrá-la.
jogo água na nuca, entro na cabine, respiro fundo. o cheiro é de xixi com desinfetante de eucalipto. penso será que ela está pensando em passar aqui pra ver se eu estou aqui? se eu fosse ela, passaria. mas ela não sou eu, porque eu jamais faria comigo o que ela fez do jeito que ela fez no dia que ela fez. nós não somos a mesma nós não somos iguais. por um momento, agradeço. e o que eu sinto é orgulho de saber que nunca faria isso com alguém. imediatamente eu desisto do cheiro de banheiro químico e abro a porta com tudo, como quem procura ar puro depois de um longo mergulho. deixo uma nota de 10 em cima do balcão pelo suco (que custa 9,90). sim. eu uso cédulas. vou em direção a minha casa e entro sem pensar. é como se o cheiro dela ainda estivesse aqui.
mas é engraçado.
dentro de mim ela não tá.
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